Docente compartilha reflexões sobre a jornada na Fisioterapia em crônica

Em texto sensível, docente narra os desafios e aprendizados vivenciados na profissão de fisioterapeuta, inspirando estudantes e profissionais da área

No cotidiano da Fisioterapia, não são apenas as técnicas e os tratamentos que moldam o profissional, mas também as experiências humanas profundas e transformadoras. Nesta crônica, o professor mestre Ricardo Maia, docente do curso de Fisioterapia da UNIFACCAMP, compartilha reflexões sobre os desafios, aprendizados e encontros marcantes em sua trajetória. O texto convida o leitor a repensar o verdadeiro sentido da profissão e a importância do olhar humano no cuidado com o outro.

Era uma manhã cinza de junho, daquelas que combinam com dúvida. Iniciava ali minha jornada como fisioterapeuta, mas algo em mim não celebrava. A vida, que às vezes deveria vir com legenda, me colocava naquele espaço sem que eu soubesse explicar como havia parado ali. Sempre me imaginei escritor, mas fui parar nos corredores da saúde — talvez por um teste vocacional antigo, talvez por um silêncio interno que confundiu vontade com possibilidade.

Não sentia amor pela profissão, confesso. E essa palavra — “amor” — sempre me pareceu inflada demais quando aplicada ao trabalho. O que me movia era outra coisa, algo que um colega chamou de “benevolência”. E usou Confúcio pra me explicar: “Aja com justiça e compaixão”. Fiquei com essa frase guardada como quem guarda um bilhete dentro do livro.

Na minha cabeça, repassava uma ideia que ouvi de alguém: a profissão pode não ser sonho, mas precisa ser digna. Se não for por paixão, que seja por respeito, dedicação e paciência. E ali, entre uma angústia e outra, eu seguia — com meu rock’n roll no carro e um pouco de filosofia na bagagem — tentando encontrar sentido. E ainda nesse contexto, lembro de uma frase do Bono, do U2, “faça o que não gosta para fazer o que gosta”.

Foi quando conheci Douglas. Quatorze anos, siringomielia, um sorriso no canto da boca e perguntas que desmontam qualquer adulto: “Você gosta do que faz?”, “Qual é sua religião?”. Ele respirava com dificuldade, mas filosofava com fôlego. Falou de Estoicismo, citou Schopenhauer e, com voz rouca, lançou luz sobre minhas sombras. Disse que a vida às vezes dá um soco na cara, mas que a coragem vem de dentro. E veio. Comecei a repensar o que era tratar alguém. Comecei a escutar de verdade. E nesse mesmo dia, ao olhar o Douglas, lembrei de uma frase de Mario Quintana: “Quem não compreende no olhar, não compreende em uma longa explicação”, o olhar dele foi certeiro.

Outro dia, encontrei Leonardo. Uma meningocele, muitos sonhos e uma imaginação vívida — mistura de novela com desejo. Ele nunca foi ao McDonald’s, mas falava como se tivesse vivido um filme inteiro. Criava, talvez, uma vida paralela para tornar sua realidade suportável. Não mentia, apenas inventava significados. E, naquele momento, eu compreendi: há vidas que se sustentam na esperança, mesmo que construída com retalhos de ficção. E ao escrever essa crônica, tanto tempo depois, e ainda fresco com a morte do Papa Francisco, lembrei de uma frase dele: “Curve-se, Curve-se, Curve-se mas não se deixe quebrar”, era o que o Leonardo fazia. Mas eu entendi que a gente acaba perdendo a corrida para a nossa própria imaginação, pois a realidade acaba vencendo! Frase essa que li, porém não me recordo do autor, mas encaixou com uma luva nesse contexto.

As conversas com essas crianças, que eram também meus pacientes, me faziam pensar. Sobre Deus, sobre ética, sobre compaixão, sobre o corpo e a alma. Comecei a estudar mais, não só técnicas, mas pessoas. Percebi que a faculdade me deu um norte, mas era no cotidiano, na prática, no suor da lida, que eu aprenderia a ser fisioterapeuta — e talvez um pouco mais humano.

Douglas, com seu olhar sereno e perguntas cortantes, me ensinou sobre aderência às sessões. Não a dos músculos, mas a da alma. Ele aderiu ao meu tratamento porque havia verdade ali. Já outros, nem tanto. E tudo bem. Entendi que nem todo atendimento será profundo, ou ao menos tenha o propósito para a minha função como fisioterapeuta, a reabilitação orgânica. Alguns são casuais, outros densos. Alguns ensinam sobre a doença; outros, sobre a vida.

Hoje, quando dou aula, digo aos meus alunos: para ser um bom profissional de saúde é preciso três coisas — conhecimento técnico, conhecimento básico e conhecimento humano. E este último não se encontra nos livros. Ele vem do olhar, do escutar sem pressa, do aceitar que o outro é um mistério que não se resolve com diagnóstico. No fim daquele dia cinza — e de tantos outros dias semelhantes — coloquei o som do U2 no carro e me deixei levar. Bono me dizia para não apagar a luz, se ainda houvesse uma. E havia. Pequena, trêmula, mas acesa. Porque, no fundo, é isso. A estrada que escolhi — ou que me escolheram — é esburacada, mas nela encontrei sentido. Meu alvo era a reabilitação, mas descobri que, muitas vezes, quem estava sendo reabilitado ali… era eu.

E para encerrar essa crônica, venho com uma parte da letra do Renato Russo, da música Andrea Doria: “Nada mais vai me ferir, é que eu já me acostumei com a estrada errada que eu segui e com a minha própria lei, tenho o que ficou e tenho sorte até demais”.

Texto: Professor Me. Ricardo Maia
Foto: Professor Me. Ricardo Maia

A estrada que eu segui